Revelação

“Você brinca e se diverte com seus amigos no apartamento do décimo andar. Num momento você se afasta deles pra olhar pela janela, por curiosidade. Você debruça-se sobre o parapeito colocando parte de seu corpo pra fora. Afasta sua cabeça adiante, tentando enxergar nitidamente o chão lá embaixo. Subitamente um de seus amigos te toca, de brincadeira, você se assusta, escorrega, seu corpo gira, seus pés primeiro sobem para depois descerem seguindo seu corpo que cai de décimo andar de cabeça pra baixo olhando pro chão”.

Existem momentos em que as pessoas gelam. Simplesmente ficam congeladas de medo, prendendo a respiração até voltarem a se sentir seguras. No caso de crianças de 10 anos, esses momentos são tão patéticamente dramáticos, que chegam a ser engraçados. O sadismo fora acidental, como quando se machuca um animal sem querer. Apareceu no meio do texto como uma simples ilustração literal, mas até eu gelei. parando a leitura por alguns segundos pra conservar o suspense. Naquela suspiro contido de dezenas de crianças simultâneas, defini que tipo de estrago faria em minha própria vida e na de muitas outras pessoas. Descobri um direcionamento estético, ou pelo menos era isso que eu achava, naquela idade. Transformar anti-sociabilidade em prestígio.

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Causar comoção em quarenta e poucas crianças de uma vez só, puramente pela capacidade intelectual, não era pra qualquer um. Transformar um momento desprezível, antes motivo de para bocejos coletivos, num ritual diário de entretenimento, não servia a  outro propósito senão provar meu talento. Nunca tinha ouvido Merzbow na vida, nem visto Orlan ou os jovens artistas ingleses, nunca tinha visto a tortura virar estética, mas ali, como muitas formigas congeladas no currículo, eu conseguia prender a atenção de todos através de palavras simples e violentas. Como um profeta do velho testamento. Era como um feitiço: todo dia eu começava a ler e todos silenciavam geladas, preparando o fôlego para rirem dos exageros.

Quando abria o caderninho verde, suas páginas vertiam sangue, enchendo elevadores e depois escoando em câmera lenta na direção do espectador. Mas era mais splatter: Cannibal Corpse, só os vocais, sem o gutural. O que existia em comum entre eu e o público de meu blog era a programação da TV, todos assistiam aos mesmos filmes americanos ruins, ninguém perdeu nenhum Sexta Feira 13 ou mesmo o mais obscuro Helloween. Era nessa parte da memória que meu texto crescia. Quem tivesse aquele tipo de crueldade que faz o sujeito colocar a cabeça pra fora da janela do ônibus para ver melhor as tripas do moto-boy, riria. Quem tivesse medo do Freddy Kruegger gargalharia quando a faca fosse torcida. Todos os alunos se divetiam, fosse pela apreciação do folhetim ensanguentado, ou pelo gosto do constrangimento. A professora não: fazia a linha novela das 7, tinha votado Collor, chapinha no cabelo, toda católica, não entendia como poderiam umas crianças suburbanas serem tão bárbaras.

Algo que eclodira com o tema do medo acabou crescendo desgovernadamente, tornando-se maior do que eu. E cada postagem em meu blog, tendia à tortura, cada palavra entrando por baixo das unhas de cada uma das quarenta e poucas crianças, correndo por seus nervos e se transformando em riso, diante do absurdo. O medo entrava em todos os textos, mesmo que fugisse muito do tema. Eu era capaz de malabarismos literários para transformar passeios ao parque em massacre sangrentos. Aos 10 anos, entrara no showbusiness.

Uma dia, quando terminei uma de minhas narrativas, Regina dirigiu-se a mim falando em voz alta de maneira a todas as crianças ouvirem:
– Você é perturbado, não deveria estar aqui, precisa de um psiquiatra! – não sabia se as crianças ao meu redor entendiam a diferença entre um psicólogo e um psiquiatra, eu entendia perfeitamente. Duvidava que a professora, por sua vez, discernisse entre as duas coisas, mas olhando nos buracos de seus olhos lia-se sua intenção: desqualificar a pessoa que ganhava de todos as atenções que deveriam ser dela assassinando suas aulas de português a golpes de facão. Naquela sala, por trás da correção política, a única pessoa com o direito de torturar crianças legitimado pelo Estado era a professora.

3 respostas para “Revelação”

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